segunda-feira, novembro 29, 2004

O Absurdo em Camus

O suicídio è como o mergulho, o extremo limite da aceitação. Tudo está consumado, o homem entra de novo na sua história essencial, avista o seu futuro e nele se precipita, no seu único e terrível futuro. O suicídio resolve à sua maneira o absurdo, arrasta-o para a mesma morte mas também se sabe que para manter o absurdo este não pode resolver-se. Escapa ao suicídio na medida em que è, ao mesmo tempo, consciência e recusa da morte, è como a corda que apesar de tudo ele avista à beira do precipício, da sua queda.
Antes de encontrar o absurdo, o homem quotidiano vive com finalidades, com uma preocupação de futuro ou justificação (não importa a quem ou a quê), ele avalia as suas possibilidades, conta com o mais tarde, com a sua reforma ou com o trabalho dos filhos. Ainda julga que qualquer coisa na sua vida se pode dirigir, na verdade age como se fosse livre, mesmo que todos os factos se encarreguem de contradizer tal liberdade.
Depois do absurdo, tudo fica abalado. A ideia de que “sou”, a minha maneira de agir como se tudo tivesse um sentido (mesmo sabendo por vezes que nada o tem), tudo isto se encontra desmentido de maneira vertiginosa pelo absurdo de uma morte possível.
Pensar no amanhã, ter objectivos, ter preferências, tudo isto supõe a crença na liberdade, mesmo que ás vezes as pessoas se certifiquem que não a experimentaram. Mas nesse momento, essa liberdade superior, essa liberdade de ser que è a única a poder fundar uma verdade, sabe-se que não existe. A morte está sempre ali como única realidade, depois dela, já não sou livre de me perpetuar, mas escravo e sobretudo escravo sem esperança de revolução eterna, sem recurso ao desprezo. Que liberdade pode existir no sentido pleno, sem seguro de eternidade? O homem absurdo compreende que até aqui estava ligado a este postulado de liberdade e que vivia nessa ilusão, isso constrangia-o de certa forma, na medida em que imaginava uma finalidade para a sua vida, conformava-se com as exigências de uma finalidade a alcançar e tornava-se escravo da sua liberdade.
O homem absurdo compreende que não era verdadeiramente livre, o absurdo elucida no ponto em que não há amanhã, eis daqui em diante a razão da verdadeira e profunda liberdade.
Como na sua obra “o estrangeiro” em que Albert Camus nos fala da disponibilidade divina do condenado à morte diante do qual se abrem, numa certa madrugada, as portas da prisão, esse incrível desinteresse perante tudo, salvo a chama pura da vida, a morte e o absurdo são aqui, bem como o sentimos, os princípios da única liberdade razoável: a que um coração humano pode sentir e viver. O homem absurdo entrevê assim um universo ardente e gelado, transparente e limitado, em que nada è possível mas tudo è concedido e após o qual só há o desmoronamento e o nada. Ele pode então decidir-se a aceitar viver em tal universo e tirar dele as suas forças, a sua recusa à esperança e o testemunho obstinado de uma vida sem consolação.
Para Camus, há um duplo absurdo, o do sentimento e o do espirito. O primeiro è o sentimento da divergência que há entre o homem e a sua vida. O absurdo do espirito è a desproporção entre os anseios humanos e a realidade, o contraste entre as reais forças do homem e os seus objectivos. O absurdo em Camus surge sempre da confrontação entre a acção humana e a realidade. Deve o homem permanecer numa vida assim absurda, num mundo falhado de sentido ou deve abandoná-lo pelo suicídio?
Camus decide-se não pelo suicídio mas pela revolta, pela sua liberdade e pela sua paixão. Por meio do suicídio teria a falsa esperança de levar o absurdo consigo para a morte. Mas o absurdo só tem sentido na medida em que o homem o conserva, na medida em que nunca se conforma com ele e contra ele se revolta permanentemente.
O homem é a presa eterna da sua verdade, quem alguma vez conheceu o absurdo a ele ficará para sempre desesperadamente ligado.
Em Camus, o absurdo não conduz a Deus, pelo contrário, a vida não precisa de sentido para ser vivida, e como viver? Devo viver em liberdade pois não há Deus acima de mim. As verdades eternas nada dizem ao pensador absurdo, ele recusa-se a saltar para o religioso porque não sabe saltar bem e o lado de lá è incerto. O homem Camusiano vive e age de uma forma inteiramente livre pois o amanhã não existe, a morte è a única realidade e a nossa vida è uma vida sem apelo. Não há Deus, não há ordem de valores. Pela paixão substitui-se a qualidade pela quantidade de vida, viver, não o melhor possível mas o mais possível. Esgotar todas as possibilidades de vida, os juízos de valor não interessam, só contam os juízos de facto.
O presente e a sucessão de momentos perante uma alma clarividente são o ideal do homem absurdo. Só este momento da vida conta e a morte vence-se pelo desprezo. O homem absurdo deve estar pronto a responder pelas suas acções e a sofrer as suas consequências. Em suma, o carácter representativo dessa existência como fim absurdo è esgotar bem a vida que se tem, em papeis sempre variados, sobreviver o mais tempo possível.

Suicídio ou Liberdade?

O sentimento do absurdo è desencadeado por vários condicionalismos, nomeadamente a lassidão e a revolta. A lassidão desperta. È o iniciar de todo o processo da tomada de consciência da condição e do sentido da vida. Acaba com a vida maquinal, rotineira, típica de nós todos diariamente e dá-lhe interpretação, podendo levar ao suicídio ou atingir a liberdade através da revolta. Esta por sua vez, não é mais que reagir ao absurdo, “digerindo-o” e aceitando-o como fundamental na vida. Sem o absurdo jamais perceberíamos a liberdade que temos e de que não damos conta.

A Revolta

A revolta è uma das únicas posições filosóficas coerentes, è um confronto perpétuo do homem e da sua própria obscuridade. È a exigência de uma impossível transparência, equaciona o problema do mundo a cada segundo. Tal como o perigo fornece ao homem possibilidades insubstituíveis de tomada de consciência, assim a revolta metafísica dilata a consciência ao longo da experiência. È a presença constante do homem em si próprio, não è aspiração pois è sem esperança. Esta revolta não passa da certeza de um destino esmagador, mas sem a resignação que devia acompanhá-la.
Aqui se vê a que ponto a experiência absurda se afasta do suicídio, pode-se crer que o suicídio segue a revolta mas erradamente, porque ele não representa a sua lógica conclusão, è exactamente o contrário, pelo consentimento que supõe.
O contrário do suicida è precisamente o condenado à morte, essa revolta dá à vida o seu preço abrangendo todo o comprimento de uma existência, restitui-lhe a sua grandeza. Não há espectáculo mais belo para um homem sem caprichos que o da inteligência em conflito com uma realidade que ultrapassa o seu entendimento, este espectáculo sobre o orgulho humano é inigualável, nem há depreciações que o afectem.
Consciência e revolta, estas recusas são o contrário da renúncia. Tudo o que há de irredutível e de apaixonado num coração humano anima-se pelo contrário, com a sua vida. Trata-se de morrer irreconciliado e não de bom grado. O suicídio è um desconhecimento, o homem absurdo tem de esgotar tudo e esgotar-se.
O absurdo è a sua tenção mais extrema, a que ele mantém constantemente com um esforço solitário, porque sabe que nessa consciência e nessa revolta do dia-a-dia testemunha a sua única verdade, que è o desafio.

A Lassidão

A lassidão surge-nos através do “porquê”, esta está no fim de uma vida maquinal, mas ao mesmo tempo inaugura o movimento da consciência. Acorda o homem e provoca a sequência que será o regresso inconsciente à cadeia onde o acordar è definitivo.
As consequências deste despertar são com o tempo inevitáveis, ou o suicídio ou o restabelecimento da vida normal, da conformidade com tudo e de consenso com o mundo. Então, a simples preocupação está na origem de tudo.
Do mesmo modo e em relação a todos os dias de uma vida sem lustro, o tempo carrega connosco mas lá o momento chega em que temos que ser nós a carregá-lo, vivemos sempre sobre o futuro, “amanhã”, “mais tarde”, “com a idade hás-de compreender” e termos similares que são inconsequências admiráveis porque no fundo se trata de morrer.
O homem quando se situa no tempo, toma o seu lugar e reconhece que está numa curva que terá que percorrer, vê que pertence ao tempo e reconhece esse horror, è a chamada “revolta da carne” para Camus, è o absurdo.
Dar conta que vivemos num mundo estranho e espesso, chegar ao ponto de percebermos a irredutibilidade do mundo, olhar para as coisas que nos rodeiam só pelo que elas são pela sua existência, è deixar de perceber este mundo, visto que durante séculos dele só entendemos as figuras e os desenhos que lá púnhamos antecipadamente e que de hoje em diante com a descoberta do “porquê” só nos faltam as forças para utilizar este artifício. O mundo foge-nos porque se transforma nele próprio, antes era para nós um cenário mascarado pelos hábitos, era o nosso mundo, víamos essência nele.
Estar casado durante anos com a mesma pessoa que amamos, chegar a casa e ver uma estranha no rosto que anteriormente nos era familiar è desejar mesmo aquilo que nos torna tão sós, toda esta espessura e estranheza do mundo è o absurdo.
Dados alguns exemplos do absurdo de Camus e segundo este não interessa tanto as descobertas mas as consequências.
Chegamos assim à pergunta depois das certezas, até onde podemos ir? Será preciso morrer voluntariamente ou ter esperança apesar de tudo? Pelo espirito temos que chegar ao ponto de percebermos o que è realmente verdadeiro ou falso.
Compreender o mundo, è, para um homem reduzi-lo ao humano, apenas ao que este pode compreender. O espirito que procura compreender a realidade só pode considerar-se satisfeito se a reduzir a termos de pensamento, tem portanto que tentar reconciliar-se com o mundo, com o que pode conhecer, deixar de parte a nostalgia da unidade, o apetite pelo absoluto que è no fundo o que ilustra o movimento essencial ao drama humano.
Há que saber o que realmente conhecemos e não nos iludirmos com o que pensamos saber, pois se assim fosse, com as ideias que temos que, se na verdade as vivêssemos, deveriam transformar toda a nossa vida. Fazemos constantemente batota connosco, temos ideias e não as seguimos, è uma contradição do espirito, chegamos a compreender o divórcio que nos separa das nossa próprias criações e nada fazemos. Cada vez que tentamos alcançar o “eu” do qual nos apoderamos, se tentamos defini-lo e resumi-lo acabamos por ver que è apenas água que nos escorre pelos dedos. Nem o nosso coração compreendemos, existirá sempre um fosso entre a certeza que tenho da minha existência e o conteúdo que tento dar a essa certeza.
Tudo o que se pode dizer então é que este mundo não è razoável em si mesmo, o que è absurdo è o confronto do irracionalismo contra o nosso desejo desvairado de clareza, cujo apelo ressoa no mais profundo do homem. O absurdo depende tanto do homem como do mundo, é o seu único elo.
O pensamento acaba por levar-nos sempre a um ponto sem respostas, ao absurdo, nunca há conhecimento verdadeiro.
Neste ponto para Camus, a resposta poderia ser o suicídio mas ele procura inverter a ordem da procura e partir da aventura inteligente para voltar aos gestos quotidianos, todas estas experiências aqui evocadas nasceram do deserto que não devemos abandonar, è um ponto do seu esforço em que o homem se encontra face ao irracional, sente nele o seu desejo de felicidade e razão.
O absurdo nasce deste confronto entre o chamamento humano e o desrazoável silêncio do mundo e disto nunca podemos nos esquecer, se nos prendermos a isto pode ser que se origine toda a consequência de uma vida. O irracional, a nostalgia humana e o absurdo que surgem devem necessariamente terminar com toda a lógica de que uma existência è capaz.
Abordando a noção de suicídio, já sabemos ou prevemos que solução é possível dar-lhe. Neste ponto, o problema è inverso. Até aqui, tratava-se de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida e a partir daqui, pelo contrário impõe-se-nos que ela será vivida até melhor por não ter sentido.
Viver uma experiência, um destino, é aceitar plenamente. Ora, não viveremos esse destino, sabendo-o absurdo, se não fizermos tudo por mantermos diante de nós este absurdo aclarado pela consciência. Negar um dos destinos de oposição de que ele vive, è escapar-lhe, abolir a revolta consciente è sofismar o problema. O tema da revolução permanente transporta-se assim para o individual. Viver è fazer viver o absurdo, è olhá-lo.
O absurdo só morre quando dele nos afastamos, sem voltar a cara para trás.

O absurdo

Quando è que nos deparamos com o absurdo? Este sentimento tem um início como todos os outros, pode surgir-nos a qualquer momento bastando para isso na opinião de Camus um clique à nossa rotina, à nossa normalidade. È um “romper” dos nossos hábitos diários, por exemplo, que desencadeia o absurdo, è um estado de espirito vazio de emoções em que o cenário da normalidade quotidiana desaba.
Em seguimento dos gestos de levantar, do duche, do pequeno-almoço, do ir trabalhar, das refeições, do chegar a casa e voltar a dormir e por aí além todos os dias, que se chega ao “porquê” disto tudo. Ao encontrar-se o “porquê”, atingimos o espanto e daí o encontrar da nossa consciência e de um sentido para sabermos se valerá a pena a vida ser vivida ou não.
Pela lassidão, que é por onde se obtêm a consciência da nossa condição até à revolta que por sua vez è o que permite sairmos do sentimento que è o absurdo, aceitar ou não o destino que pensamos que nos è dado em vez de sermos nós a escolhê-lo.

Tolerância

Se a esperança para a resolução de todos os conflitos à escala mundial fosse a tolerância, bem poderíamos perdê-la, pois a tolerância por si só não basta. Não há um consenso global sobre assunto algum e portanto esta é entendida de formas diferentes e com alguma confusão. Há que, cada vez mais, defini-la e dar-lhe sentido.
Formalmente, tolerância, consiste pois, “(…) em nos abstermos de intervir na acção ou opinião de outros, mesmo que o possamos fazer ou que desaprovemos ou não apreciemos a acção ou opinião em questão. A tolerância relaciona-se, de forma essencial, ao que é desagradável, que não nos dá prazer e é moralmente repreensível.”¹
Assim sendo, como devemos agir? Aceitando tudo o que nos é adverso, contrariando os nossos princípios, de forma a que se mantenha a harmonia entre diferenças? Ou discordar, assumindo uma posição de crítica ao outro e cair na possibilidade de criar conflito?
Este é um assunto deveras complexo para ser descrito, a título de exemplo, com duas (aparentemente) simples perguntas. O que há a perceber logo de início, é se devemos agir ou não. O não agir é também uma forma de tolerância e presume uma aceitação pelo acto em questão.
Seguidamente temos que perceber que temos legitimidade e autonomia para agir e não há lei nenhuma que diga que tenhamos que ser tolerantes. Assim, a tolerância é uma forma voluntária de acção que presume um equilíbrio entre o bom senso e o conhecimento científico. Casos há em que a tolerância não é admitida e isto porque ela tem os seus limites.
Em casos moralmente repreensíveis alegar tolerância na dimensão da religião é mais difícil, pois apesar das diferenças entre religiões e consequentemente entre valores morais das mesmas, até os indivíduos que não tem religião tem regras de acção diferentes entre si, e sendo assim, a nível social, quando a situação não nos agrada simplesmente ou não nos dá prazer temos tendência a não nos imiscuir nas mesmas. Então como avaliar a tolerância? Como uma virtude ou como um valor?
Se é uma virtude ser-se tolerante, torna-se nula se não o formos. Se é um valor, temos que agir segundo o mínimo de regras de acção, mantermo-nos informados sobre as condutas que legitimem a tolerância.
Encontrar o equilíbrio tem sido o “ouro dos alquimistas” ao longo dos últimos tempos. Há quem defenda que enquanto não houver diálogo entre as religiões, não haverá tolerância que supere os conflitos, mas estamos em crer que a esperança está na pessoa.
É pelo processo de respeito aos direitos humanos, que internacionalizado, abrirá portas para o crescimento da consciência moral social e individual. Passando pela educação, alteridade, responsabilidade e liberdade, o individuo crescerá a respeitar o outro como seu igual e assim aceitar a diferença. Aceitar a diferença que haverá sempre, não significa perder identidade, significa adequação e sintonia com outras realidades e/ou vivências partilhadas.
O mundo civilizacional está a passar as maiores crises de sempre, desde a falta de educação do dia a dia ao terrorismo. O caos aproxima-se e se não tomarmos medidas radicais e bruscas cairemos num percurso irreversível, sem retorno. As prioridades estão trocadas, não há respeito por nada nem por ninguém. Caiu-se num pós-dever, num individualismo que não é responsável, que prejudica a própria pessoa e mais grave, os outros.
É preciso compreendermos que qualquer acção que tenhamos terá consequências em nós e nos outros, desta forma, isso torna-nos responsáveis por todos implicitamente.
Assim, a consciencialização individual e social tem que ser formada pois quem não souber pensar bem, não pode contribuir para que uma sociedade seja produtiva ou progrida.


1 - Canto-Sperber, M. (dir), Dictionnaire d’Ethique et de Philosophie Morale. Paris, P.U.F., 1996, pp. 1536-1537.

Mão ao Peito

Povo meu!
Que vives em eterna angústia
Condenado pelo fado que os teus avós te deram por herança
Nobre povo, valente
Mas não imortal…
Não mudas o Tempo que seguro caminha
Cego pela vida.
Mas muda as vontades…
Que te roubam a alma guerreira outrora heróica.
Rasga novos horizontes de glória
Na lúcida ilusão dos sonhos.
Bebe a água que te rejuvenesce os sentidos e te refresca ideais
Revolta-te contra o não-vivido mendicante
Que te cobra uma nova realidade…
A tua,
A esquecida,
A sempre não-vivida
Que não é a dos teus avós.

Sophia

"HOMENAGEM A RICARDO REIS"
(Fernando Pessoa)


Não creias, Lídia que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo circulo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tarde
O tempo apaga tudo menos esse
Longo e indelével rasto
Que o não vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes
Jamais se detém kronos cujo passo
Vai sempre mais á frente
Do que o teu próprio passo.


Sophia de Mello Breyner Andresen